segunda-feira, 10 de setembro de 2012

o que nos está a acontecer - 1

A atual crise é um gigantesco sintoma dum combate que tem sido travado desde o século XIX entre as forças do trabalho e o capital e que atualmente se carateriza por um ataque do capitalismo financeiro e da ideologia neo-liberal no sentido do destruição das sociedades do pós-guerra que tinham concretizado avanços civilizacionais no sentido da proteção e dignificação do trabalho e dos trabalhadores. Este feroz ataque realiza-se neste momento, mercê dum contexto favorável e que resulta de fatores que se conjugaram na criação duma conjuntura ajustada às forças do capital: desmantelamento do Estado soviético, queda do muro de Berlim e reformas profundas na sociedade chinesa na direção do capitalismo de Estado iniciadas com Zhao Ziyang. Tudo isto foi causa e consequência do descrédito (não definitivo) da ideologia comunista, causa e consequência do desânimo das classes mais desfavorecidas, causa e consequência do enfraquecimento do movimento sindical. O que carateriza a situação que hoje vivemos tem de ser entendido não só à luz daqueles acontecimentos que afetaram, inicial e diretamente, mais de metade da população do globo, mas também à luz da atual revolução tecnológica centrada nas tecnologias da informação. Estas, globalizando o mundo, potenciam as suas repercussões para lá do que é habitual. Só que, como dizia o outro, a história não acaba aqui.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

onde é que eu já vi este filme?...

"Os bancos, já atingidos pelo boom especulativo imobiliário que, com a tradicional aliança entre otimistas auto-iludidos e a crescente desonestidade financeira, chegara ao auge alguns anos antes do Grande Crash, estavam sobrecarregados de dívidas não saldadas, recusavam novos empréstimos para habitação e refinanciamento para os existentes. Isso não os impediu de irem à falência aos milhares, quando (1933) quase metade das hipotecas americanas ficaram em atraso e eram executadas mil propriedades por dia."
(Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Lisboa, Editorial Presença, 1996, pp. 106-107)
Isto passou-se entre 1929 e 1933, com a crise do sistema bancário dos EUA a atingir a economia industrial norte-americana e a repercutir-se na economia alemã e europeia. Uns anos antes, no seguimento do Tratado de Paz de Versalhes, em 1919, a Alemanha, responsabilizada pelos custos da guerra, foi obrigada a financiar-se no exterior, pelo que a sua dívida soberana arrastava-se pelas ruas da amargura. Se tivéssemos aprendido com a História, poderíamos perguntar agora, perante a dramática crise que se instalou entre nós: onde é que eu já vi este filme?...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

ver com as mãos

Muitas vezes, na minha infância, era censurado por mexer nas coisas que observava. Perguntavam-me, então, em tom de censura, se eu via com as mãos. De facto, na altura, víamos com as mãos, gostávamos de tocar e mexer nas coisas com as mãos, sentir a materialidade das coisas. Ao contrário dos jovens de hoje que dispensam as mãos, evitam mexer, não ousam tocar ou apalpar. Dispensam as mãos, ou melhor, apenas aproveitam a ponta dos dedos: o tocar resume-se a teclar. Lidando com realidades virtuais, intangíveis, os jovens não precisam das mãos; o seu trabalho ou relação com o mundo não passa por tocar ou mexer. Aliás, no futuro, com o computador a dominar cada vez mais exclusivamente a relação do homem com o meio que o envolve, as próprias tarefas do computador poderão ser decididas e executadas pela voz ou por movimentos do olhar. No futuro, poderão enfiar as mãos nos bolsos ou ficar de braços cruzados. E em vez de não ver com as mãos, passarão a mexer com os olhos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

problemas de matemática norte-coreanos

Evocando a morte do grande timoneiro da Coreia do Norte, Kim Jong-il, cuja morte há poucos dias, segundo a agência de notícias do regime, foi chorada pela própria Natureza, deixamos aqui dois problemas de matemática para os meninos do 1º ciclo e que fazem parte dos compêndios escolares, também oficiais, e nos ajudam a compreender um pouco melhor a estranha e ao mesmo tempo patética reação dos norte-coreanos perante a morte do ditador. Então é assim...
«Uma rapariga está a servir de mensageiro dos soldados da nossa pátria durante a guerra de ocupação japonesa. Transporta as mensagens num cesto que contém cinco maçãs, mas é mandada parar por um soldado japonês, num posto de controlo. Ele rouba-lhe duas maçãs. Quantas sobram?»
Ou então, ainda mais um problema...
«Três soldados do Exército Popular Coreano mataram trinta soldados americanos. Quantos soldados americanos foram mortos por cada um deles se todos mataram o mesmo número de soldados americanos?»
(in Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo, Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2011, p. 147)

sábado, 17 de dezembro de 2011

fomos revolucionários mas perdemos a revolução

Dos livros mais inspiradores que li nos últimos tempos destaco dois belos livros de Tony Judt, historiador inglês recentemente falecido. Refiro-me a Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos (Ed.70, 2010) e o seu último livro de memórias, O Chalet da Memória (Ed. 70, 2011), já ditado no apogeu da esclerose lateral amiotrófica que o vitimaria em agosto de 2010. Era um autor difícil de catalogar, mas talvez seja isso a marca dos livres pensadores do nosso tempo. Com efeito, em entrevista ao jornal The Guardian, afirmava que fora da New York University era visto como um esquerdista, um comunista que renega as suas origens e dentro da universidade era considerado como um típico elitista liberal branco fora de moda (Jornal «Público», 8/8/2010). Seja quem for, vai fazer-nos falta. Pensava e ajudava a pensar e isso é fundamental nos conturbados tempos que correm.
Faleceu com 62 anos, portanto, podemos dizer que é da nossa geração (da maioria dos que acompanham este blogue), que viveu acontecimentos que também marcaram o nosso imaginário político. Comungamos de muitas das suas alegrias e dos seus descontentamentos e perplexidades. Por isso, não resisto a transcrever um belíssimo texto sobre a nossa geração. Porque fomos revolucionários e perdemos a revolução.
"Ninguém se deve sentir culpado por nascer no local certo na altura certa. Nós, no Ocidente, fomos uma geração com sorte. Não mudámos o mundo; em vez disso, o mundo, obsequioso, mudou para nós. Tudo parecia possível: ao contrário dos jovens de hoje, nunca duvidámos de que haveria um trabalho interessante para nós e por isso não sentimos a necessidade de desperdiçar o nosso tempo em algo tão degradante como uma «faculdade de gestão». A maioria conseguiu empregos úteis na função pública ou no ensino. Dedicámos a nossa energia a discutir o que estava mal no mundo e como mudá-lo. Protestámos contra as coisas de que não gostávamos e ainda bem que o fizemos. Aos nossos olhos, pelo menos, fomos uma geração revolucionária. É uma pena que tenhamos perdido a revolução." (Tony Judt, O Chalet da Memória, Lisboa, Ed. 70, 2011, pp. 126-127)
Quando as noites de inverno apertarem e se ouvir o vento e a chuva lá fora, à desfilada, não percamos este livro: a sua amargura lúcida segreda-nos que não estamos sózinhos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

como os políticos se enganam

Na sua mensagem ao Congresso sobre o estado da União, o presidente americano Calvin Coolidge afirmava:
«Nenhum Congresso dos Estados Unidos já reunido, ao examinar o estado da União, encontrou uma perspectiva mais agradável do que aquela que hoje surge [...] A grande riqueza criada pela nossa iniciativa e indústria, e poupada pela nossa economia, teve a mais ampla distribuição entre o nosso povo, e corre como um rio a servir a caridade e os negócios do mundo. As exigências da existência passaram do padrão da necessidade para a região do luxo. A produção, que aumenta, é consumida por uma crescente procura interna e um comércio exterior em expansão. O país pode encarar o presente com satisfação e prever o futuro com optimismo."
Este cenário eufórico foi apresentado em 4 de dezembro de 1928. Isto é, no ano seguinte assistiríamos ao crash da bolsa de Nova Iorque e ao início da Grande Depressão! De facto, parafraseando um dos personagens de Shakespeare, há mais coisas no céu e na terra que no discurso dos políticos.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

charutos monte cristo

O que pode signficar um nome? Que histórias se escondem por detrás dum nome? Um nome banal ou inócuo como o dos charutos monte cristo, por exemplo. Atente-se nesta surpreendente história contada por Alberto Manguel em Uma História da Leitura (Lisboa, Ed. Presença, 2010 - 3ª ed., pp. 121 e ss.).
Em meados do século XIX, menos de 15% do operariado cubano não sabia ler. Saturnino Martínez, operário da indústria de charutos e poeta, publicava um jornal para os trabalhadores, La Aurora. Só que enfrentava o problema do analfabetismo. Lembrou-se, então, de criar um leitor público. Foi junto do diretor do liceu de Guanabacoa propondo que a escola colaborasse na promoção da leitura em voz alta no local de trabalho. O diretor da escola dirigiu-se aos trabalhadores da fábrica de charutos El Figaro e convenceu-os da utilidade da iniciativa. Escolheu-se, então, um trabalhador que seria o leitor, o lector oficial, pago pelo seus restantes trabalhadores para lhes ler enquanto enrolavam os charutos, um trabalho mecânico e cansativo. Em 1866, o jornal La Aurora noticiava a leitura nas oficinas, levando os trabalhadores a familiarizarem-se com os livros, promovendo assim o conhecimento e a amizade. Com efeito, várias fábricas seguiram o exemplo. E foram tão bem sucedidas estas sessões públicas de leitura nos locais de trabalho que acabaram por ser consideradas subversivas.
O material destas leituras era escolhido previamente pelos trabalhadores e ía de panfletos políticos a romances e coletâneas de poesia. Mas tinham os seus favoritos. Entre eles, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Esta escolha tornou-se tão popular entre os operários enroladores de charutos que um grupo de trabalhadores escreveu ao autor, pedindo-lhe autorização para dar o nome do herói do seu romance a um dos seus charutos. Dumas consentiu e nasceram os «charutos Monte Cristo».

sábado, 19 de novembro de 2011

responder em Filosofia

Responder em Filosofia, por exemplo nos testes de Filosofia, é como construir sucessivamente círculos cada vez mais amplos. Assim, o horizonte de cada frase é progressivamente mais amplo. Isso significa que, cada vez mais, vamos mais longe, mas nunca perdemos ou largamos o impulso inicial, a questão de partida. A questão de partida, que motivou o caminho da resposta, nunca é abandonada e vai sendo progressivamente esclarecida. Ao ficar mais clara porque aclarada, ilumina melhor o nosso caminho. Ao mesmo tempo que nos vamos afastando, vamos ficando mais perto, mais aconchegados ao trilho que vai sendo estabelecido, pontuado pelas luzes que vamos acendendo. Ficar simultaneamente longe e perto não é um paradoxo para a reflexão filosófica. Poderia ser para um modo vulgar e comum de pensar. Para a Filosofia esse aparente paradoxo é apenas uma tensão, uma tensão na distância, ou uma distância tensa, que se comprime e distende, mas que nos impulsiona, como a flecha do arco que se comprimiu e distendeu. Responder em Filosofia torna-se uma aventura.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

a democracia é um empecilho

Talvez seja mais correto falarmos de aventura democrática do que propriamente de sociedade democrática para dar conta da indeterminação radical enquanto característica constitutiva da democracia moderna (Chantal Mouffe, 1996:25). A democracia é caracterizada pela "dissolução dos sinalizadores de certeza" (Claude Lefort, Democracy and political theory, Oxford, 1988, p. 19), tornando-se assim o reino da provisoriedade, da indeterminação, do indefenível. A democracia é um espaço de total disponibilidade para as soluções que a comunidade for encontrando  e produzindo para os seus vários conflitos. Daí escapar a um substancialismo fundador ou acabar por dissolver as referências tradicionais que servem de fundamento: Deus, Natureza, Razão. Enquanto espaço duma total disponibilidade, a democracia é um permanente convite para as soluções (provisórias) que a comunidade humana vá encontrando. Enquanto espaço de indeterminação e aventura, a democracia é um empecilho na crise atual.

auto-organização ou dependência?

No início de A Grande Ruptura - a natureza humana e a reconstituição da ordem social (Lisboa, Quetzal Editores, 2000), Francis Fukuyama questiona-se sobre o facto de as democracias da América Latina seguirem o modelo constitucional dos Estados Unidos sem conseguirem alcançar os mesmos resultados em termos de estabilidade política e eficiência económica. Fukuyama considera que devemos procurar um princípio de explicação nos valores culturais que enformaram a tradição política e não no mero decalque do sistema político-constitucional. Ora, ao nível das raízes históricas e culturais deveremos ter em conta o contributo modelar do protestantismo que, ao mesmo tempo que reforçaria o individualismo americano, também impulsionariam o que Alexis de Tocqueville chamou «a arte da associação» americana, a forte tendência da sociedade americana para se auto-organizar em milhentas associações voluntárias e comunidades. Aliás, o próprio individualismo também exprimiria a vitalidade da sociedade civil americana, já que esse individualismo sublinha a autonomia e auto-suficiência das comunidades locais face ao Estado. Esta característica essencial da sociedade norte-americana explicaria o êxito da democracia norte-americana. E, por oposição, o relativo fracasso das democracias da América Latina. É que aqui os valores culturais enformadores destas sociedades não foram causados pelo protestantismo, mas pelas tradições imperiais e católicas de Portugal e Espanha. E aqui, em vez das comunidades locais se auto-organizarem, temos uma sociedade civil inerte, indiferente, com medo de existir e sempre dependente do Estado central, perante quem se habituou a viver de mão estendida.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

a lista de Roberto Bolaño

Roberto Bolaño, chileno, autor de 2666 e Os Dissabores do Verdadeiro Polícia, deixa-nos na sua última entrevista, um mês antes de morrer em 2003, a lista dos livros que marcaram a sua vida. Porque alguns são também os livros que marcaram muitos de nós, aqui fica esse rol de grandes maravilhas, que mais uma vez nos interpelam e motivam para regressar aos clássicos em tempos de papel colorido enchendo as livrarias. Assim sendo, tome nota: Dom Quixote, de Cervantes, Moby Dick, de Melville, A obra completa de Borges, Rayuela, de Cortázar, Uma Conspiração de Estúpidos, de Kennedy Toole, Nadja, de Breton, as cartas de Jacques Vaché, todo o Ubu, de Jarry, A Vida - Modo de Usar, de Perec, O Castelo e O Processo, de Kafka, Aforismos, de Lichtenberg, O Tratado de Wittgenstein, A Invenção de Morel, de Bioy Casares, o Satíricon, de Petrónio, História Romana, de Tito Lívio e Pensées, de Pascal.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

autor versus narrador - no aniversário da morte de josé saramago

Interessante, apesar de ter ficado apenas enunciada  e não desenvolvida, a valorização que Saramago associa à figura do Autor contra a figura "academicamente abençoada" do Narrador. A morte do autor tinha sido defendida pelas correntes estruturalistas dos finais do século XX, uma morte que vinha na sequência das mortes de Deus (Nietzsche), do sujeito consciente (Freud e Lacan) e do homem enquanto centro da criação e senhor da História (Darwin, Marx, Lévi-Strauss, Althusser), tudo constituindo uma dolorosa série de feridas narcísicas. A morte do autor, nos estudos literários e linguísticos, fora acompanhada por uma autonomização do texto enquanto estrutura produtora de sentido e pela valorização do narrador (ou narratário). Porém, como todas as modas, também o estruturalismo acabou por cair em desgraça, apesar duma loquaz produção e de ter reunido à sua volta brilhantes pensadores como Barthes, Derrida ou Foucault. Da morte de Deus (Dieu est mort, Marx est mort et moi-même je ne me sens pas très bien...) passou-se à reivindicação do seu advento, do mesmo modo que da morte do homem se passou à sua defesa e dos seus direitos.

Ora, não deixa de ser muito interessante a reflexão que Saramago nos deixou, enunciada nos seus termos mais elementares mas nem por isso menos sugestivos, sobre a relação autor / narrador. Veja-se a propósito a entrada de 9 de Agosto de 1996 nos Cadernos de Lanzarote - Diário IV (Ed. Caminho, 1997, pp. 191-196). É que o apagamento do autor perante o narrador, pode significar a sua resignação ou demissão perante os compromissos inadiáveis próprios dum intelectual total (Sartre) num mundo ainda de desigualdades gritantes e que não pode esquecer a Humanidade que sofre apesar das loas do neo-liberalismo e do pensamento único. É que o autor que se escreve e descreve na sua obra será sempre um combatente ou um desistente, para a nossa alegria ou para a nossa fúria.

domingo, 13 de março de 2011

cantando e rindo - que pode a esquerda fazer?

Slavoj Zizek, psicanalista e filósofo esloveno e professor visitante na New School for Social Research, em Nova Iorque, conta-nos no seu livro Da Tragédia à Farsa (Lisboa, Relógio D'Água, 2010) uma anedota cuja história se passa no século XV, quando a Rússia estava ocupada pelos mongóis e onde um guerreiro mongol viola a mulher de um camponês russo. Só que antes pede ao camponês que lhe pegue nos testículos, pois como o chão está todo coberto de pó, não os quer sujar. Quando o guerreiro termina e se afasta, o camponês põe-se a rir e a dar saltos de alegria. Perante a mulher surpreendida com o seu comportamento, explica-lhe que tinha enganado o violador, pois este tinha ficado com os tomates sujos de pó. Esta anedota serve para Zizek se interrogar sobre os caminhos da esquerda. E pergunta: "Não estará a esquerda numa situação semelhante?" A esquerda seria, assim, o pobre camponês russo que, perante a realidade brutal e violenta, se limita a não segurar os tomates do poder e deixar que eles se sujem com o pó do caminho, rindo e dançando com essa espécie de artimanha. Com essa espécie de esperteza saloia. E penso, a propósito, nas manifestações deste sábado. No slogan dos Homens da Luta, a luta é alegria, trá-lá-lá. Afinal o que estivemos lá a fazer senão cantar e rir. É esse o caminho da esquerda? Cantando e rindo?... Satisfeitos porque enganámos quem nos fode ao não lhes segurarmos nos tomates?... 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

amor difícil

A  propaganda neo-liberal, apesar do seu afinco em tentar demonstrar que o Estado é um estorvo e o paraíso funciona segundo as leis de um mercado desregulado, não consegue esconder as suas contradições. Nomeadamente, quando perante as falências e os prejuízos, se recorre ao dinheiro dos contribuintes. Nestes casos, diz-se que se socializam os prejuízos e privatizam os lucros. Noam Chomsky refere-se a estas práticas com palavras esclarecedoras: "protecção estatal e subsídio público para os ricos, disciplina de mercado para os pobres" (Noam CHOMSKY, A Democracia e os Mercados na Nova Ordem Mundial, Lisboa, Antígona, 2000, p. 58). Essa duplicidade, continua Chomsky nessa conferência de 1994 (!) realizada na Universidade de Duke, revela-se depois na política dos governos, com cortes nas políticas sociais e aumento do bem-estar dos ricos, com medidas fiscais regressivas e subsídios sem limites. Essa política apresentada como cortando com a dependência da sociedade em relação ao Estado leva o nome de «amor difícil». Só que, no fim de contas, isso significa amor para os ricos e difícil para os outros.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

contra a transparência

A propósito das divulgações do Wikileaks, tem-se discutido o valor do segredo e da transparência. Ora, uma sociedade de transparência absoluta não só é impossível, como seria uma sociedade perigosa, de olhos e olhares a vigiarem-nos a tempo inteiro. Há, pois, que preservar espaços e zonas de segredo.Quer para salvaguardar a vida privada, quer para proteger a actuação do Estado, nomeadamente no domínio da diplomacia e das relações internacionais. Se não protegermos a via diplomática na abordagem dos diferendos entre os Estados, damos azo a que estes recorram à violência na resolução dos problemas, por não ser possível a via da diplomacia. Só que esta via exerce-se, nomeadamente, através do segredo e da discreção. Aqui, a transparência nem sempre é benvinda, tal como o segredo nem sempre é mau. A ambiguidade e a duplicidade são estratégias de actuação dos Estados que devem ser preservadas pelo sergredo.
No caso português, a ambiguidade perante ingleses e alemães foi usada com êxito no adiar da nossa intervenção na Primeira Guerra. Se, na altura e por hipótese absurda, o Wikileaks divulgasse as nossas posições ambíguas, as instruções dadas aos embaixadores em Londres e em Berlim e as informações que estes enviavam para Lisboa, os nossos soldados teriam ido mais cedo para os campos de batalha da Flandres encontrar o sofrimento e a morte.